Nasci com essa paixão, esse encantamento pelas palavras. Quando pequena, repetia para mim mesma as que achava mais bonitas: pareciam caramelos na minha boca. Colecionava mentalmente as mais doces, como translúcido, magnólia, borbulha, libélula, e não sei quais outras.
Lembro que por um tempo detestei meu nome curtinho e sem graça: pedia a minha mãe que o trocasse por algo belo como Gardênia, Magnólia, Virgínia. Açucena me fascinou quando o li no meu livro de texto no 1º ano da escola, e quis me chamar assim. Mas eu queria muitas coisas impossíveis. Como lia muito (minha cama era embutida em prateleiras onde, em horas de insônia, bastava estender a mão e ter a companhia de um livro), a linguagem cedo fez parte da minha vida como as ficções. Eu lia o que me caía nas mãos, desde gibis até complicados volumes que eu não entendia mas pegava na biblioteca de meu pai, e lia achando impressionante ou bonito, misterioso ou triste.
Comecei a trabalhar com a nossa língua bastante cedo, traduzindo obras literárias do inglês e do alemão. Mais ou menos nessa época, início dos 20 anos, passei a escrever crônica de jornal, e poemas avulsos, que aos poucos foram sendo publicados em livros, até finalmente iniciar uma carreira de ficcionista já beirando os 40 anos. Antes disso fiz mestrado em lingüística, e fui professora dessa matéria em uma faculdade particular durante dez anos. Não escrevo isso para dar meu currículo, mas para dizer que não desconheço o assunto: ler e escrever são para mim tão naturais quanto respirar, e conheço alguma teoria. Nosso idioma, o português do Brasil, me é íntimo, querido, respeitado, amado – e está em mim como a própria alma. Aliás, a psique se reconhece, se analisa e se expressa através das palavras.
De vez em quando, inventa-se alguma reforma para essa sutil, forte e independente engrenagem.
Passei por várias nesses muitos anos, as ortográficas em geral pífias, algumas muito malfeitas. Porém a gente se adapta, até por razões de ofício. Mas, por favor, não tentem defender nosso português de estrangeirismos: a língua não precisa ser defendida. Ela é soberana. Ela é flexível. Ela é viva. Nenhum gramático ou legislador, brilhante ou tacanho, poderá botar essa dama em camisa de força, nem a conter num regime policialesco.
Ela continuará sua trajetória, talvez sacudindo a cabeça diante das nossas desajeitadas tentativas de controlá-la.
Como dirá qualquer bom professor de português, ou qualquer lingüista dedicado, estudioso, uma parcela imensa dos termos que hoje usamos, que por muito usados pela classe culta foram dicionarizados – o dicionário sempre corre atrás da realidade –, começou como estrangeirismo. Não preciso citar, mas cito, garagem do francês, futebol do inglês, coquetel da mesma forma.
A língua incorpora esses termos se são úteis, e os adapta ao seu sistema. Botou o “m” final em miragem, por exemplo, porque no nosso sistema as palavras não terminam em “age”.
Muitos termos não podem ser traduzidos: quem diz isso é esta velha tradutora que dedicou a isso milhares de horas de sua vida. E não é possível formar frases decentes, fluidas, claras, expressivas como devem ser as frases, se a cada “estrangeirismo” tivermos de fazer um rodeio, uma explicação da palavra intraduzível.
Isso, além do mais, nos colocaria na rabeira do mundo civilizado e globalizado, onde palavras – como objetos de bom uso – circulam de um lado para outro, pousam aqui ou ali, adaptam-se, ou simplesmente passam. Quando não passam, é porque são necessárias, e acabam colocadas entre aspas ou em itálico.
Línguas altamente civilizadas usam “estrangeirismos” livremente,
sem culpa nem preconceito, como fator de expressividade. Isso nem as humilhou, nem as perverteu: ficaram enriquecidas.
Nós é que precisamos lutar contra uma onda terceiro-mundista, uma postura de inferioridade que nos faz gastar energias que poderiam ser aplicadas em algo urgente como um orçamento vinte vezes maior para a educação do nosso povo.
(Lya Luft, Revista Veja, 11 de maio, 2011, p.26)