Voluntário
O velho gaúcho foi ajudar, no posto mais próximo do hotel em que se hospedara, o serviço de assistência aos desabrigados pelo temporal. Ninguém lhe dá a idade que tem, ao vê-lo caminhar desempenado, botar colchão na cabeça, carregar dois meninos ao mesmo tempo, inclinar-se até o ladrilho, reassumir a postura erecta sem estalo nas juntas. Só que não se apressa e, quando um mais afobado desanda a correr pelo pátio ou a gritar ordens, aconselha por baixo da bigodeira branca:
- Eh lá, não te apures que é lançante.
E se o outro não entende:
- Devagar pelas pedras, amigo!
Está sempre recomendando calma e jeito; bota a mão no ombro do voluntário insofrido e diz-lhe, olhos nos olhos:
- Não guasqueies sem precisão nem grites sem ocasião, homem!
O outro, surpreso, ia queimar-se, mas o rosto claro e amical do velho o desarma. Ainda assim, pergunta:
- Mas por quê?
- Porque senão te abombachas no banhado, chê!
Como tem prática de campo e prática de cidade, prática de enchente, de seca, de incêndio, de rodeio, de eleição, de repressão a contrabando e prática de guerra (autobiografia oral), propõe, de saída, a divisão dos serviços em setores bem caracterizados:
- Pois não sabes que tropa grande se corta em mais de um lote pra que vá mais ligeiro?
Ajuda mesmo, em vez de atrapalhar, e procura impedir que outros atrapalhem, o que às vezes aumenta um pouco a atrapalhação, mas tudo se resolve com bom humor. Vendo o rapazinho imberbe que queria tomar a si o caso de uma família inteira, que perdera tudo, afasta-o de leve, explicando:
- Isto não é cancha pra cavalo de tiro curto.
Nomeia o rapazinho seu ajudante-de-ordens, e daí a pouco a família sente que, depois de tudo perder, achara uma coisa nova: proteção e confiança.
Anima a uns e outros, não quer ver ninguém triste demais da conta. Suspende no ar o garotinho que não fala nem chora, porque ficou idiotizado de terror, puxa-lhe o queixo, dálhe uma pancadinha no traseiro, e diz-lhe:
- Estás que nem carancho em tronqueira, piazito! Toma lá este regalo.
O regalo é um reloginho de pulso, de carregação, que ele saca do bolso da calça como se fosse mágico - e é capaz de tirar outros, se aparecerem mais garotos infelizes.
[...]
(Carlos Drummond de Andrade. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. único, 2003, p.570-571)
O verbo que exige o mesmo tipo de complemento que o do grifado acima está na frase: