No tempo de andarilho
Prospera pouco no Pantanal o andarilho. Seis meses, durante a seca, anda. Remói caminhos e descaminhos. Abastece de perna as distâncias. E, quando as estradas somem, cobertas por águas, arrancha.
O andarilho é um antipiqueteiro por vocação. Ninguém o embuçala. Não tem nome nem relógio. Vagabundear é virtude atuante para ele. Nem é um idiota programado, como nós. O próprio esmo é que o erra.
Chega em geral com escuro. Não salva os moradores do lugar. Menos por deseducado. Senão por alheamento e fastio.
Abeira-se do galpão, mais dois cachorros, magros, pede comida, e se recolhe em sua vasilha de dormir armada no tempo.
Cedo, pela magrez dos cachorros que estão medindo o pátio, toda a fazenda sabe que Bernardão chegou. "Venho do oco do mundo. Vou para o oco do mundo." É a única coisa que ele adianta. O que não adianta.
(...)
Enquanto as águas não descem e as estradas não se mostram, Bernardo trabalha pela bóia. Claro que resmunga. Está com raiva de quem inventou a enxada. E vai assustando o mato como um feiticeiro.
Os hippies o imitam por todo o mundo. Não faz entretanto brasão de seu pioneirismo. Isso de entortar pente no cabelo intratável ele pratica de velho. A adesão pura à natureza e a inocência nasceram com ele. Sabe plantas e peixes mais que os santos.
Não sei se os jovens de hoje, adeptos da natureza, conseguirão restaurar dentro deles essa inocência. Não sei se conseguirão matar dentro deles a centopéia do consumismo.
Porque, já desde nada, o grande luxo de Bernardo é ser ninguém. Por fora é galalau. Por dentro não arredou de criança. É ser que não conhece ter. Tanto que inveja não se acopla nele.
Manoel de Barros. Livro de pré-coisas: roteiro para uma excursão poética no Pantanal.2.a ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p.47-8.