Crime organizado e militarização
Apesar de todos os avanços ocorridos no estado de direito, o crescimento da violência e da criminalidade, ao lado do agravamento das já graves violações de direitos humanos no ano de 1994, conduziu as autoridades a uma militarização crescente do enfrentamento da violência. Os resultados bastante limitados, para dizer o mínimo, atingidos pela ocupação militar da cidade do Rio de Janeiro mostram claramente a ineficiência dessa abordagem. O equívoco não é apenas logístico, mas reside na concepção mesma da abordagem militarizada.
O estereótipo das sociedades modernas, em especial as cidades, como o lugar da violência faz crer que a violência urbana tenha aumentado de forma ininterrupta desde a formação das grandes cidades, mas isso não corresponde à realidade. Na realidade, o crescente monopólio da violência física e o autocontrole que os habitantes da cidade progressivamente se impuseram levaram a uma crescente “pacificação” do espaço urbano. Se os níveis de criminalidade forem tomados como um indicador de violência, fica claro que esta declinou desde meados do século XIX até meados do século XX: somente por volta dos anos 1960 a violência e o crime começam a aumentar, tornando-se o crime mais violento depois dos anos 1980.
Apesar da violência, do crime, das graves violações de direitos humanos, não está em curso no Brasil uma “guerra civil” que exige uma crescente militarização, com a intervenção das forças armadas – como ocorreu na cidade do Rio de Janeiro. A noção de guerra é equivocada por que os conflitos ocorrem no interior da sociedade, onde seus membros e grupos sociais – especialmente em sociedades com má distribuição de renda – jamais cessam de viver em situações antagônicas. É a democracia que permite à sociedade conviver com o conflito, graças ao respeito das regras do jogo definidas pela constitucionalidade e dos direitos humanos, tanto direitos civis e políticos como sociais e econômicos: o enfrentamento militarizado do crime organizado não é compatível com a organização democrática da sociedade. Nenhuma pacificação na sociedade é completa. A matança pela polícia, a violência do crime, as chacinas, os arrastões, a guerra do tráfico não são episódios de uma guerra civil nem retorno ao estado de natureza. São consequências de conflitos e políticas de Estado permanentemente reproduzidas pelas relações de poder numa sociedade autoritária ao extremo, por meio das instituições e das desigualdades sociais.
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Essa crítica às operações militares e ao equívoco, a nosso ver, do governo federal e do governo do estado do Rio de Janeiro em prolongar, com pequenas modificações, um convênio de duvidosa legitimidade constitucional não visa pregar a inação do governo federal, ou até mesmo das forças armadas. É intolerável para o estado de direito e para a forma democrática de governo que largas porções do território nacional estejam controladas pelo crime organizado como em várias favelas e bairros ou nas fronteiras dos estados. Mas é inaceitável, na perspectiva de uma política de segurança sob a democracia, uma delegação do governo civil às forças armadas para um enfrentamento do crime que tem contornos das antigas operações antiguerrilhas. De alguma forma essa intervenção militar velada no estado do Rio de Janeiro confere novas formas inquietantes da militarização das questões civis da segurança pública, agravando a continuidade da influência das forças armadas já presente na manutenção do policiamento ostensivo por forças com estatuto de subsidiárias às forças armadas e pelo foro especial das justiças militares estaduais. Ora, a formalidade estrita da democracia requer que o governo civil exerça a plenitude de seu poder na definição e no exercício da política de segurança.
In: DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços – direitos humanos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.31-34.