Texto 2 - Um ano sem festa
Maria Berenice Dias
A Lei Maria da Penha foi recebida com grande entusiasmo – com estardalhaço, até. Veio para reverter uma triste realidade: o absoluto descaso para com a violência doméstica. Sem dúvida, o crime mais praticado e menos punido no país. Por isso, não é exagero dizer que a desatenção da sociedade, do Estado e da Justiça tornou invisível a agressão contra a mulher.
A violência doméstica nem sequer dispõe de um tipo penal autônomo e, mesmo hoje, enseja singelo aumento de pena. Apenas à lesão corporal é imposta pena mais severa, quando o agressor mantém vínculo de convivência com a vítima ou se prevalece
da existência de relações domésticas, coabitação ou hospitalidade.
Ante a quantidade da pena, a lesão corporal leve era considerada delito de pequeno potencial ofensivo e acabava nos juizados especiais. As vítimas eram forçadas a desistir; os agressores podiam fazer transação penal; e a condenação, quando havia, de modo geral, não passava da imposição do pagamento de cestas básicas.
Para dar um basta a tudo isso é que a Lei Maria da Penha excluiu a violência doméstica do âmbito da Lei dos Juizados Especiais, proibiu a pena de multa e entrega de cestas básicas e, em muito boa hora, criou os Juizados de Violência Doméstica contra a Mulher.
Mas as legisladoras – já que a lei foi feita por um consórcio de entidades feministas – foram além. Definiram a violência doméstica, não a amarrando dentro de tipos penais, mas descrevendo condutas que autorizam a imposição de medidas protetivas.
Essa é a maior novidade. Agora, a violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral praticada no âmbito da família ou de qualquer relação íntima de afeto constitui violência doméstica. Denunciada alguma das práticas, a autoridade policial deve encaminhar à Justiça o pedido de providências formulado pela vítima. Ainda que a conduta não configure delito, basta o registro da ocorrência para a adoção de medidas protetivas.
A Lei Maria da Penha visa a assegurar proteção à vítima, e não colocar o agressor na cadeia. Ele só é preso se descumprir as determinações judiciais. Quando houver condenação, em vez de aplicar pena restritiva de liberdade, o que cabe é impor o comparecimento a programas de reeducação.
Atende muito mais ao propósito da lei afastar o agressor do lar, impedir que se aproxime da mulher e dos filhos e estabelecer a obrigação de pagar alimentos. Às claras que tais medidas só podem ser tomadas por um juiz afeito a esses temas e que conheça a dinâmica das relações familiares.
A vítima precisa ser acolhida por equipe interdisciplinar, contar com apoio do Ministério Público e ser acompanhada por defensor, todos devidamente capacitados para garantir-lhe a segurança de que não desfruta no lar. Daí a indispensabilidade da Vara da Violência Doméstica. Essa é a única forma de dar efetividade à Lei Maria da Penha.
Porém, não foi fixado prazo para instalação das varas e houve o deslocamento da competência dos juizados especiais para as varas criminais. Ora, não há como pretender que juízes sem nenhuma intimidade com o direito das famílias apliquem medidas protetivas. Também não se pode exigir que dêem preferência às demandas envolvendo violência doméstica quando precisam priorizar ações de réu preso e evitar a prescrição.
A lei atribuiu a inúmeros órgãos públicos e entidades não-governamentais a adoção de nada menos do que 42 medidas. Mas ninguém está fazendo nada. Os tribunais, com a surrada desculpa da falta de recursos, não instalaram os juizados. Na maioria dos Estados, não existe sequer um. Quando existe, é um só, na capital. Por tudo isso, a situação atual está muito, muito pior do que estava antes.
Assim, não há como deixar de reconhecer, após um ano de vigência da Lei Maria da Penha, que a violência doméstica permanece invisível. As mulheres continuam com medo. Por não receberem a proteção que merece, acabam desistindo, voltam para casa e seguem apanhando.
A falha é nossa, mas todos continuam acreditando que mulher gosta de apanhar e que, em briga de marido e mulher, ninguém deve pôr a colher.