Um mundo sem estantes
Um amigo entra na minha casa nova, vê as estantes ainda vazias e começa o bombardeio: “Para que espaço para tanto livro? Livro está acabando”. Ele não quer saber da vista, de nenhum detalhe da obra, da arquitetura ou da decoração. O incômodo com as estantes é maior que tudo isso.
Para me safar do cerco, banco o moderno. “Claro que eu sei, os livros eletrônicos são o futuro. Mas isso aqui é para armazenar o que eu já tenho, entende?” Cascata, tática diversionista. Eu sabia que, se já estava sob tiroteio pesado, tudo iria piorar quando meu amigo visse a outra face do móvel. Ali, eu dava os primeiros passos para guardar meus CDs. Mas o sentimento só dura até o próximo balaço: “E esse monte de lugar para CDs? CD não vai existir mais”. Em busca de trégua, sugiro sairmos para jantar. Encontramos a mulher dele. Como na faixa de Gaza, o cessar-fogo tem curta duração. “O Álvaro está maluco, botou um monte de estantes na casa nova, parece que não sabe que livros e CDs estão condenados.”
Isso faz alguns anos. Nem preciso dizer que, tanto para livros quanto para CDs, o espaço naquelas estantes, que pareciam obsoletas, está no fim. E o mais irônico: meu amigo, profeta do apocalipse do plástico e do papel, nunca chegou a comprar um leitor eletrônico de livros. Continua encomendando seus volumes de papel. Já eu, dono do imóvel ultrapassado, adotei o livro digital. Caminho sem volta para um mundo sem estantes? Talvez não.
O futuro desse universo cada vez mais digital é cheio de riscos. Imagine: colapso na nuvem. Crashes de servidores, fibras ópticas rompidas, blecautes em série nos principais polos hi-tech da Terra. Nos primórdios da web, uma situação assim teria uma consequência grave: internet fora do ar. Grave, porém única. Músicas, filmes e demais arquivos baixados pela rede estariam a salvo, guardados nos computadores das casas das pessoas. Mas, hoje, tudo mudou. Um crash gigantesco seria muito mais devastador. Porque cada vez menos gente armazena em casa seus arquivos digitais. Está tudo em servidores poderosos, espalhados pelo mundo. Nessa nuvem, digital e amorfa.
Não é fora de propósito imaginar um cenário de perda de contato com essa nuvem. Sem livros físicos, sem CDs, os arquivos digitais ficariam perdidos na nuvem isolada. A desordem digital extrema. E o mundo das ideias salvo pelas estantes.
(Álvaro Pereira Júnior, Folha de S.Paulo, 08.12.2012. Adaptado)
Glossário
crash: quebra, colapso
hi-tech: de tecnologia avançada
web: rede, internet
Na expressão do terceiro parágrafo – profeta do apocalipse do plástico e do papel –, o termo