A arte de procrastinar
Procrastinar, segundo o "Houaiss", é "transferir para outro dia ou deixar para depois; adiar, delongar, postergar, protrair". Mas o que sabem os dicionários? Bichos afoitos, na ânsia de engolir o mundo, mal têm tempo de mastigar cada palavra, de extrair delas todo o sabor e os nutrientes, de modo que a definição acima diz tanto sobre a complexa arte da embromação quanto "forma de interação psicológica ou psicobiológica entre pessoas, seja por afinidade imanente, seja por formalidade social" explica o "amor".
Percebo, porém, que divago. Em vez de encarar o dever proposto no título e falar sobre a procrastinação, a pratico: passeio por enfadonhos arrabaldes, perco-me nas borradas fronteiras da linguagem e do coração. Tudo bem, não há razão para me afligir, pois as crônicas são redondas como a Terra, e às vezes é indo para trás que chegamos ali na frente. Se o parágrafo anterior fugiu à teoria, serve ao menos como demonstração prática do que entendo por procrastinar: adiar alguma obrigação chata arrumando outra atividade igualmente tediosa para pôr em seu lugar.
Veja, caro leitor: ir ao cinema em vez de trabalhar não é procrastinação. É vagabundagem, no melhor sentido do termo. Já abrir o site do banco e ficar digitando a infinita sequência numérica do código de barras de uma conta de luz que só vence no fim de junho, quando se está cheio de trabalho para amanhã, eis o mais nítido retrato da procrastinação. Pois essa praga dispersiva é filha de Deus com o Diabo, é um pecado que já vem com penitência. O procrastinador só se permite gozar o adiamento do trabalho maltratando-se no interlúdio. Troca-se de aborrecimento, mais do que dele se desvia; eis como o saci da procrastinação oculta sua presença e surrupia nosso tempo, nossa vida.
A procrastinação é um mal, meus caros, não por arrancar-nos do trabalho, mas por nos grilar o ócio. Não é aferrandome à labuta, portanto, que pretendo combater este vício, mas buscando forças para me entregar totalmente à lassidão.
(Antonio Prata, Folha de S. Paulo, 30/05/2012)
Está plenamente adequada a correlação entre tempos e modos verbais na frase: