Reflexões sobre o travessão
Adoro sinais de pontuação. Eles são o detalhe mais sofisticado da linguagem visível, isto é, a escrita. “Linguagem visível” – não é uma estranha imagem? E vejam como o travessão da frase anterior deixou o leitor respirar graficamente, aquele microssegundo de pausa que destaca, como uma discreta moldura, a informação seguinte! Já esse ponto de exclamação indicou imediatamente ao leitor, sem nenhuma explicação acessória, a admiração do cronista. Parece óbvio, não? – mas vejam, na simples vírgula depois do “óbvio”, e imediatamente depois do “não” (observem o detalhe das aspas, e, agora, dos parênteses), o ponto de interrogação já avisa o leitor, simulando a entonação, de que se trata de uma pergunta.
Parece óbvio – mas não é. Houve uma longa caminhada histórica, de séculos, para a escrita ser realmente pensada como um sistema de leitura silenciosa, que só a partir do século 16 começou a se tornar comum. Antigamente, a linguagem escrita era toda articulada pensando na voz alta e na leitura pública (também porque havia pouquíssimas cópias de texto disponíveis, que precisavam ser socializadas, antes que Gutemberg libertasse o trabalho braçal da reprodução). Daí, por exemplo, que nasceu a cedilha, esta curiosa excrescência que todo usuário de teclado não adaptado ao português sofre para encontrar ou formatar. Num momento da história do latim, a letra “C”, em alguns casos, passou a ser pronunciada como “ts” ou “s” (e não mais com o som de “k”, como em “casa”) – e, para que o leitor não errasse a leitura, o escriba escrupuloso anotava, embaixo do “C”, um pequeno “s”. E assim nasceu o híbrido “Ç”. Aquele rabinho que tanto reprova nos exames de redação e nos faz passar vergonha ortográfica (a pior de todas! – embora, tecnicamente falando, seja a mais desimportante, porque puramente convencional), o tal rabinho não passa de um ésse disfarçado. E há outras curiosidades – o próprio ponto, esse sinal mortal que fecha a frase, também foi uma invenção relativamente recente da história da escrita, para informar o leitor que uma frase acabava e começava outra.
Linguagem visível: (vejam como esses dois pontos são plenos de sentido!) colocar no papel, como desenho, um código capaz de representar a infinita riqueza e variedade da nossa fala de todo dia (Para os curiosos, Uma história da leitura, de Alberto Manguel, é um livro maravilhoso sobre esta passagem). Mas eu queria falar era do travessão – sou adepto deste recurso sofisticado, que abre clareiras de sentido apenas por abrir espaço no meio da frase. Além de indicar, no início dos parágrafos, que alguém vai falar, um recurso romanesco clássico, hoje cada vez mais substituído pelas aspas (o padrão inglês de marca de diálogo), que são boas, reconheço, mas um tantinho “sujas” na “mancha” da página, que fica cheia de “penduricalhos”.
Já o travessão – mas acabou o espaço.
TEZZA, Cristovão. Reflexão sobre o travessão. Gazeta do Povo,
Curitiba, p. 3, 21 de ago. 2012.