Lições de Outros Animais
Adair Philippsen*
“Os animais são melhores que nós!”
Ernesto Sabato
1 Pena que, dos demais seres do reino animal, só imitemos o sorriso da hiena, as lágrimas do crocodilo, os amigos da onça, a ferocidade do leão (do IR). Pena que só concebamos bodes expiatórios, vacas de presépio, ovelhas negras, abutres, parasitas, chatos, sanguessugas etc. Lamentável, pois as lições dos bichos são bem diversas.
2 Mantêm suas moradas, andam, voam e nadam libertos na natureza, sem a ficção do Estado constituído. Seus líderes não comandam por medidas provisórias. A convivência, até com os vegetais, não é regrada por textos legislativos. E nem eventuais litígios são dirimidos por tribunais. Movem-se em paz, sem moeda, e sem Executivo, Legislativo e Judiciário e o restante do aparato estatal de segurança (as gazelas perseguidas pelos guepardos que o digam), transporte (a colisão de borboletas no ar ou o excesso de carga das formigas passam ao largo de regulamentos), saúde (não dispõem de rede hospitalar e sequer têm acesso a drogas químicas), previdência (o abate do velho boi de canga é o exemplo clássico da falta de aposentadoria por tempo de serviço), turismo (a circulação de andorinhas de outras freguesias acontece sem vistos de entrada, passaportes, alfândegas). E funciona. E como funciona.
3 Os cães permanecem de guarda 24 horas sem lhes ocorrer exigir a redução da jornada de trabalho. As vaquinhas nas estrebarias jamais exigiram adicional de insalubridade (em contrapartida, já são acusadas – por nós é óbvio – de contribuir com seus gases para o aumento do efeito estufa). Os pássaros canoros não exigem cachês por seus concertos. As cigarras não entram em greve: recolhem-se. O tico-tico cria os filhos do chupim sem conceber a idéia de despejar os intrusos do ninho. O panda, sem cobrar direitos, não se opõe à livre circulação de sua imagem. O macho da viúva-negra, mesmo ciente de que servirá de pasto à aranha depois do amor, não procura analista e nem propõe separação à companheira. As gorilas não se submetem a cirurgia estética ou enxertos de silicone. As aves de rapina não se escondem por temor de ordem de prisão e contra elas não se tem notícia de instauração de CPI. Os herdeiros das cabras sacrificadas não visam à indenização sequer por dano moral. A zebra, desde sempre, contentou-se com o figurino listrado em preto e branco sem pensar em substituir a roupa, conquanto pareça que vai sair definitivamente de moda devido à ameaça de seu desaparecimento (por obra nossa, lógico).
4 Até em cativeiro, o comportamento dos bichos em nada lembra os humanos: está por acontecer o primeiro motim de ratos de laboratório ou de canários-belgas em gaiolas ou de hipopótamos em zoológicos ou ainda de peixes em aquário.
5 São ene as lições. O galo lidera o terreiro mesmo sem campanha, eleição, caixa 2, e nem por isso se faz totalitário. O joão-de-barro constrói a casa com a idéia fixa no encanto da amada e na sorte da prole e, se enganado, não impõe cárcere privado à la Lindembergs (des)humanos. E, ante a dor da perda de filhote por queda do ninho, o universo todo sabe que o infortúnio é obra do acaso sem a menor semelhança com o ímpeto bestial do pai que arremessa a filha pela janela do apartamento.
6 Talvez os exemplos comovam: fiquemos com o sabiá. É claro que nos deve sensibilizar o calvário dos animais sob risco de extinção (alarmantes 38% das espécies do planeta) e dos que são vítimas de maus-tratos (vide cavalos esquálidos atrelados a carroças, vira-latas arrastados pela cidade, pinguins encharcados de óleo lançado no mar, ursos polares em agonia pelo degelo etc.). Mas nos fixemos nos solfejos do sabiá. É desnecessário compreender o canto: como lembra Rubem Alves, basta amá-lo. Pois, extasiados com sua melodia, quiçá notemos nela a mensagem de que não somos melhores que os outros animais só porque não aprendemos suas melhores lições. As lições dos selvagens...
*JUIZ DE DIREITO
ZH, 3/12/2008, P.17.
Considere as afirmativas sobre a acentuação gráfica.
... é decorrente de uma situação de concordância verbal e ocorre também em formas derivadas do verbo VIR.
, no texto, são acentuadas por serem proparoxítonas.
, que também deveria ser acentuada.