O Chaplin das crianças
Não faz muito tempo, passaram o filme Tempos modernos aqui, outra vez, e a gurizada foi ver e gostou. Achou engraçado engraçado, não apenas engraçado curioso. Você e eu não temos mais condições de julgar um filme de Charles Chaplin. A obra de Chaplin faz parte do nosso patrimônio cultural e mental. A gente a reverencia mesmo sem ver. Gosta por obrigação. Mas as crianças não tinham nenhum compromisso com Chaplin, mal sabiam de quem se tratava, e gostaram porque gostaram. Uma vez, tínhamos visto juntos uma coleção de curtas-metragens antigos - inclusive do Chaplin -, e a reação geral fora de profunda chateação. Minha também, só que eu não podia confessar. E saí da experiência com sombrias premonições. Acabara-se a inocência do mundo.
As pessoas se preocupam com o efeito da violência na sensibilidade das crianças, mas minha preocupação é um pouco diferente. Tenho medo de que esta seja uma geração à prova de deslumbramento. Uma geração dessensibilizada não pela desumanidade que a técnica moderna transmite, mas pela própria técnica moderna. Certamente, não eram menos violentas do que os seriados de TV de hoje as comédias pastelão de 50 anos atrás, quando pastelão era apenas uma das coisas que as pessoas levavam na cara. Mas a novidade do cinema - a primeira arte elétrica, o primeiro divertimento industrial - prevenia contra a banalização da violência. Todos os saltos dados pela técnica do entretenimento e da informação desde então nos encontraram dispostos ao deslumbramento. Me lembro que quando a televisão mostrou as primeiras tomadas da Lua, diretamente da nave que a circundava, ficamos, os adultos, de boca aberta, emocionados, na frente da TV até que uma das minhas filhas entrou na sala e perguntou quando aquilo ia acabar, que ela queria ver um desenho animado.
Sinto muito que meus filhos não terão mais nada com que se emocionar no desenvolvimento da técnica de divertir, mas talvez seja melhor assim. A técnica não quer dizer nada para quem nasceu na era da televisão. A técnica já chegou a Marte e não tinha nada lá, grande coisa. Mas a simples astúcia do corpo de um comediante como Chaplin, a sabedoria de um gesto feito há 50 anos ainda é compreendida e ainda faz rir. Talvez o fim do deslumbramento com a técnica seja o começo da verdadeira inocência, depurada e receptiva, e muito mais bem informada do que a nossa.
(Luis Fernando Verissimo, Banquete com os deuses)