Atenção: Para responder às questões de números 1 a 11, considere o texto abaixo.
Se um cachorro “pensa” ou não, “tem consciência” ou não, isso depende da definição escolhida. Algumas pessoas não atribuirão “consciência” a criatura alguma que não seja capaz de abstrair um conceito geral com base em fatos particulares e, a partir daí, aplicar o aparato da lógica formal de modo a fazer inferências para além desses fatos. Outros conferem “consciência” a criaturas que reconhecem seus parentes consanguíneos e se recordam de locais prévios relacionados a situações de perigo ou de prazer. Pelo primeiro critério, os cães não têm consciência; pelo segundo, têm. Mas os cães permanecem sendo cães e sentindo aquilo que sentem, sem levar em consideração os rótulos escolhidos por nós.
No contexto dos esforços internacionais para conservar a biodiversidade, essa questão assume uma importância central, uma vez que o argumento clássico sobre os motivos pelos quais uma criatura supostamente decente e moral como o Homo sapiens pode maltratar e até mesmo exterminar outras espécies se assenta sobre uma posição extrema num continuum. A tradição cartesiana, formulada explicitamente no século XVII, mas presente, sem dúvida, numa forma “popular” ou em outras versões, ao longo de toda história humana, sustenta que os outros animais são pouco mais que máquinas desprovidas de sentimentos e que apenas os homens gozam de “consciência”, não importa como ela seja definida. Nas versões radicais dessa teoria, até mesmo a dor e o sofrimento manifestos de outros mamíferos (tão palpáveis para nós, e da maneira mais visceral, uma vez que as expressões vocais e faciais desses parentes evolutivos próximos são semelhantes às nossas próprias reações aos mesmos estímulos) nada mais sinalizam do que uma resposta automática sem nenhuma representação interna em termos de sentimento − porque os outros animais não têm consciência alguma. Assim, levando adiante esse argumento, poderíamos nos preocupar com a extinção em função de outras razões, mas não em virtude de alguma espécie de dor ou sofrimento associado a essas mortes inevitáveis.
Não acredito que muitas pessoas sustentem nos dias de hoje uma versão tão forte da posição cartesiana, mas a tradição de se considerar os animais “inferiores” como “menos capazes de sentir” certamente persiste como um paliativo que ajuda a justificar nossa rapacidade − do mesmo modo como os nossos ancestrais racistas argumentavam que os “insensíveis” índios eram incapazes de experimentar alguma forma de dor conceitual ou filosófica pela perda de seu ambiente ou modo de vida (desde que os territórios reservados suprissem suas necessidades corporais de alimento e segurança), e que os “primitivos” africanos não lamentariam a terra natal e a família abandonadas à força uma vez que a escravidão lhes assegurasse a sobrevivência do ponto de vista físico.
(Adaptado de: Stephen Jay Gould. A montanha de moluscos
de Leonardo da Vinci. Trad. de Rejane Rubino. S.Paulo: Cia.
das Letras, 2003. p.465-6)