No tempo dos trens
Parodiando o grande poeta que escreveu - Havia manhãs, naquele tempo -, quero registrar: havia trens naquele tempo. E havia as estações de trem, e as viagens de trem, antes que alguém decidisse extinguir o transporte ferroviário em benefício do rodoviário. Nada quero ajuizar sobre a justeza econômica ou o equívoco técnico dessa medida; o que posso garantir é que a poesia da vida saiu perdendo. Pois não me venham comparar o prosaísmo de uma viagem de ônibus com os devaneios de uma viagem de trem.
Em primeiro lugar, os trens brasileiros, ao contrário dos japoneses, não tinham pressa: a vapor, a diesel ou mesmo elétricas, nossas locomotivas permitiam que os passageiros fossem contemplando com calma a paisagem, e às vezes até simulavam algum defeito, só para que todos pudessem esticar as pernas numa estação perdida no meio do caminho. As estações, com sua arquitetura padronizada, eram recantos sombreados de onde se avistava a pracinha de uma vila ou a torre da igreja.
Depois, é preciso considerar que a vida dentro dos trens também era outra. As pessoas passeavam tranquilamente pelo corredor, puxavam conversa em rodinhas, ou estacionavam nas plataformas de ligação entre os vagões, tomando um ventinho no rosto - prazer tanto maior porque proibido. Sem falar na possibilidade de um luxo - um carro-restaurante - onde se sentava para uma refeição, um lanche, uma cerveja.
Para que pressa? Havia mais tempo para não se fazer nada, naquele tempo. O ritmo dos trens influía no dos negócios, no das providências burocráticas, até no dos amores: esperavase mais para dar e receber um beijo, ou então para sofrer uma despedida. Nesse caso, havia mais tempo para aliviar uma frustração, repensar na vida. Sem pressa, nossos trens gostavam de deixar a gente viver em paz.
Se um dia houver uma reversão em nossos meios de transporte e ressuscitarem as viagens de trem, me avisem, que eu virei correndo do outro mundo para garantir um lugar à janela.
(Expedito Trancoso, inédito)