Amizade
A amizade é um exercício de limites afetivos em permanente desejo de expansão. Por mais completa que pareça ser uma relação de amizade, ela vive também do que lhe falta e da esperança de que um dia nada venha a faltar. Com o tempo, aprendemos a esperar menos e a nos satisfazer com a finitude dos sentimentos nossos e alheios, embora no fundo de nós ainda esperemos a súbita novidade que o amigo saberá revelar. Sendo um exercício bem-sucedido de tolerância e paciência – amplamente recompensadas, diga-se – a amizade é também a ansiedade e a expectativa de descobrirmos em nós, por intermédio do amigo, uma dimensão desconhecida do nosso ser.
Há quem julgue que cabe ao amigo reconhecer e estimular nossas melhores qualidades. Mas por que não esperar que o valor maior da amizade está em ser ela um necessário e fiel espelho de nossos defeitos? Não é preciso contar com o amigo para conhecermos melhor nossas mais agudas imperfeições? Não cabe ao amigo a sinceridade de quem aponta nossa falha, pela esperança de que venhamos a corrigi-la? Se o nosso adversário aponta nossas faltas no tom destrutivo de uma acusação, o amigo as identifica com lealdade, para que nos compreendamos melhor.
Quando um amigo verdadeiro, por contingência da vida ou imposição da morte, é afastado de nós, ficam dele, em nossa consciência, seus valores, seus juízos, suas percepções. Perguntas como “O que diria ele sobre isso?” ou “O que faria ele com isso?” passam a nos ocorrer: são perspectivas dele que se fixaram e continuam a agir como um parâmetro vivo e importante. As marcas da amizade não desaparecem com a ausência do amigo, nem se enfraquecem como memórias pálidas: continuam a ser referências para o que fazemos e pensamos.
(CALÓGERAS, Bruno, inédito)
I. No primeiro parágrafo, há a sugestão de que a tolerância e a paciência, qualidades positivas mas dispensáveis entre amigos verdadeiros, dão lugar à recompensa da incondicionalidade do afeto.
II. No segundo parágrafo, expressa-se a convicção de que o amigo verdadeiro não apenas releva nossos defeitos como também é capaz de convertê-los em qualidades nossas.
III. No terceiro parágrafo, considera-se que da ausência ocasional ou definitiva do amigo não resulta que seus valores e seus pontos de vista deixem de atuar dentro de nossa consciência.