Atenção: As questões de números 11 a 20 referem-se ao texto seguinte.
À sua imagem e semelhança
Já se foi o tempo em que os homens acreditavam ter sido feitos à imagem e semelhança de Deus. Era uma fantasia bonita, que dizia respeito à grandeza dos ideais e à insignificância da condição humana. Se o projeto original do ser humano correspondia à imagem e semelhança de Deus, cada homem particularmente se sabia tão dessemelhante da plenitude divina que deveria viver buscando a perfeição a que estaria destinado. O sentido de uma vida se escreveria, assim, de trás para a frente; era preciso agir de tal modo a fazer valer a aposta antecipada do Criador a respeito de suas criaturas.
A era da religiosidade terminou no Ocidente, libertando os homens da servidão milenar em relação aos planos traçados por um Outro onipotente, onisciente e onipresente. O homem contemporâneo continua procurando um mestre a quem servir e, em última instância, vai encontrá-lo em algumas representações inconscientes, onde se preserva a fantasia infantil sobre a onipotência do Outro. Por outro lado, o desamparo deixado pela falta de um Deus provocou uma onda de novos fundamentalismos religiosos. Mas a religiosidade pós-moderna é uma espécie de religiosidade de resultados, que invoca as forças celestes para garantir as ambições terrenas dos fiéis.
O homem ocupa hoje o centro de sua própria existência. Essa emancipação nos confronta com o vazio. Não há Ninguém lá, de onde esperávamos que um Pai se manifestasse para dizer o que deseja de seus filhos. Não fomos feitos para corresponder à imagem e semelhança de Deus nenhum. Trata-se agora de reproduzir a imagem e semelhança de nós mesmos. Essa é a fantasia, ao mesmo tempo grandiosa e hedionda, da clonagem. Grandiosa pelo poder que confere à ciência e aos seus sacerdotes, supostamente capazes de abolir o acaso e a indeterminação da vida. Hedionda − pelas mesmas razões.
(Trecho adaptado de Maria Rita Kehl. 18 crônicas e mais
algumas. S. Paulo, Boitempo, 2011, p.109-10)