Lista suja, justiça lenta
A maré do “mata e esfola” inunda a sociedade global. Nos Estados Unidos, o Patriot Act e Guantánamo dispensariam comentários, não fosse dolorosa a vitória conquistada sobre o sonho dos Founding Fathers pelos muy amigos das liberdades. Na Europa, os regimes de Sarkozy e Berlusconi tratam de criminalizar não só os imigrantes, mas também os turistas. O prefeito de Roma, declaradamente fascista, proibiu os visitantes de falar alto e mastigar nas ruas da Cidade Eterna. Enquanto isso, os policiais encarregados da vigilância dos aeroportos da Espanha e de Israel capricham na exteriorização do preconceito e da paranóia.
O cabedal tupiniquim de arreganhos e truculências recebeu grossa contribuição da Associação dos Magistrados Brasileiros - seja qual for o sentido da palavra “grossa”. A “lista suja” de candidatos subverte o princípio constitucional da inocência do cidadão até a sua condenação definitiva. O espírito do tempo contaminou o espírito dos juizes brasileiros. O presidente do sodalício de meritíssimos explica ao distinto público que a lista não é um “juízo de valor”, senão preciosa e indispensável informação para um eleitorado notoriamente incapaz de discernir entre ladravazes e homens de bem.
Os brasileiros estão diante de um caso de esquizofrenia: enquanto membros de uma agremiação corporativa, os nobres magistrados se imaginam cidadãos comuns, despidos das togas. Tão comuns esses cidadãos que, presumo, estejam decididos a dispensar as prerrogativas da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos. Atarraxada a persona cidadã (sic) e corporativista, os juizes sentem-se à vontade para trucidar um dos princípios que conferem legitimidade às suas funções.
Ironicamente, a lista dos magistrados é um libelo à ineficiência do Judiciário brasileiro, encalacrado na lentidão da prestação jurisdicional. Dez a quinze anos é o prazo para uma decisão definitiva. O Estado tem não só o direito, mas o dever de acusar e condenar tempestivamente os que burlam a lei. Só os regimes totalitários ou autoritários podem manter, indefinidamente, sob o guante da incerteza, tanto o cidadão acusado quanto a sociedade que exige a reparação do crime.
Imagino que depois da iniciativa insensata, os juizes que pertencem à Associação dos Magistrados Brasileiros terão o cuidado de arguir a própria suspeição, caso estejam envolvidos nos processos que examinam acusações contra os “listados”. Provavelmente com o propósito de acalmar os ânimos, os magistrados avisam que no rol dos sugismundos serão incluídos apenas os processados por iniciativa do Ministério Público. “Ah, bom, então estamos salvos”, exclamaria Poliana.
A Constituição de 1988, de muitas virtudes democráticas, facilitou o protagonismo dos funcionários do Estado que detêm a nobre e perigosa prerrogativa de acusar. Sem prestar contas a ninguém - sem limites nem sanção - os mais afoitos e imaturos apresentam a síndrome de Charles Bronson. Na ausência do contrapeso da responsabilização pela denúncia infundada, atiram em todas as direções.
Quem tem poder ilimitado vai usá-lo ilimitadamente. É incorreto e obtuso generalizar, mas no mundo jurídico e fora dele há quem se espante com essa aliança entre a imaturidade e o protagonismo, não fosse ela marca registrada da vitória da celebridade sobre a competência, num país de tradição autoritária e escravocrata.
É a partir dessa condição uterina, partilhada por jornalistas de copa e cozinha, que imaginam prestar serviço à justiça social e à democracia. Nem sequer desconfiam dos custos e sacrifícios da luta pelo Estado de Direito contra a ditadura - injustamente chamada de militar - engendrada pelo contubérnio entre o coronelato das cidades e do campo, a desorientação das classes médias e os interesses dos Estados Unidos. Nas últimas semanas, a reprodução eletrônica da Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade está à disposição na internet. Os manifestantes clamam pela volta do regime de exceção. Só falta acorrerem às ruas com seus tacapes.
Os jovens do parquet alegam em suas frequentes manifestações midiáticas que pretendem proteger a sociedade contra a ação dos malfeitores. Basta que exerçam sua função primordial, a de fiscalizar o cumprimento da lei, não importa a cor do colarinho. A consequência dos desmandos ministeriais está escancarada nos milhares de processos inquinados de nulidade processual e naqueles nem sequer iniciados por conta de denúncias ineptas.
Com a publicação da lista dos “sujos”, os juizes desempenham o papel que os delatores privados cumpriam no Império Romano. Os delatores serviam para dirimir as disputas políticas entre os senadores e as contumélias entre os ambiciosos aspirantes ao poder e os favoritos do imperador de turno.
Disponível em: < httD://www.cartacaDÍtal.com.br/aDD/coluna.isp?a=2&a2=5&i=1670>