É o discurso que nos liberta e é o discurso que estabelece os limites da nossa liberdade e nos impulsiona a transgredir e transcender os limites — já estabelecidos ou ainda a ser estabelecidos no futuro. Discurso é aquilo que nos faz enquanto nós o fazemos. E é graças ao discurso, e seu ímpeto endêmico de espreitar além das fronteiras que ele estabelece para a sua própria liberdade, que nosso estar no mundo é um processo de vir a ser perpétuo — incessante e infinito: nosso vir a ser e o vir a ser do nosso “mundo da vida” — juntar-se, misturar-se, embora sem solidificar, estreita e inseparavelmente, entrançados e entrelaçados, e compartilhando nossos respectivos sucessos e infortúnios, ligados um ao outro para o melhor e para o pior, desde o momento de nossa concepção simultânea até que a morte nos separe.
O que nós chamamos de “realidade”, quando entramos em um ânimofilosófico, ou “os fatos da questão” quando seguimos obedientemente as instâncias da doxa, é tecido de palavras. Nenhuma outra realidade nos é acessível: não acessamos o passado “como ele realmente aconteceu”, o qual Leopold von Ranke celebremente conclamou (instruiu) seus colegas historiadores do século XIX a recuperar. Comentando sobre a história de Juan Goytisolo a respeito de um velho, Milan Kundera salienta que a biografia — qualquer biografia que tente ser o que seu nome sugere — é, e não poderia deixar de ser, uma lógica artificial inventada, imposta retrospectivamente a uma sucessão incoerente de imagens, reunida pela memória de partículas e fragmentos. Ele conclui que, em total oposição às presunções do senso comum, o passado compartilha com o futuro a ruína incurável da irrealidade — esquivando-se/evadindo-se obstinadamente, como ambos o fazem, das redes tecidas de palavras movidas pela lógica. Não obstante, essa irrealidade é a única realidade a ser captada e possuída por nós, que “vivemos em discurso como o peixe na água”.
Zygmunt Bauman e Riccardo Mazzeo. O elogio da
literatura. Zahar. Edição do Kindle (com adaptações).