Texto I
A menina que criava peixes na barriga
(fragmento)
A menina lavava a louça no jirau estendido para o fundo da casa de madeira. No quintal havia um lago de águas represadas que no tempo invernoso transbordava, formando um córrego, que por sua vez desaguava no rio.
Barrigudinha, como quase todas as crianças ribeirinhas amazônicas, ela ajudava a mãe depois do almoço e guardava no armário de madeira branca os parcos talheres e vasilhas usados nas refeições familiares.
Quando seus parentes dormiam à tarde, Kelly do Socorro – esse era o nome dela – se dirigia ao pequeno porto da frente da casa para olhar os navios transportadores de minérios, parados ao longo do rio, à espera de carregamento. Ali ela se imaginava viajando num daqueles monstros de ferros que povoavam a paisagem e alimentavam seus sonhos. Acenava, também, para os pescadores passantes em seus barquinhos motorizados movidos à gasolina, pois as velhas montarias a remo agora davam lugar às rabetas. Mas até o barulho delas lhe encantava.
A mãe quebrava o encanto, chamando-a. Era hora de preparar o jantar, antes que os carapanãs que costumavam aparecer subitamente em nuvens ao anoitecer enchessem a casa. O pai chegaria logo com cachos de açaí para serem debulhados e preparados no acompanhamento da refeição do dia seguinte.
Kelly chorava. – Dói muito minha barriga, mãe. Não aguento mais isso todo dia.
A mãe retrucava. – Tu tens que fazer isso, criatura. É da tua natureza. E fazia massagem na barriga, no peito e na boca da menina com azeite de copaíba.
Talvez por causa do amargor desse óleo vegetal ela não resistia e expelia pela boca dezenas de peixes sobre o jirau. A mãe escolhia os maiores, descamava-os com rapidez e os fritava para o jantar. Os restantes eram jogados ainda vivos no pequeno igarapé atrás da casa. Eram de várias espécies e se reproduziam e cresciam rapidamente, formando enormes cardumes, para a satisfação dos pescadores da área. [...]
(Fernando Canto)