A MISSA DO COUPÉ
“Na Igreja de São Domingos diz-se hoje uma missa por alma de João de Melo, falecido em Maricá.”
Não se sabendo quem mandava dizer a missa, ninguém lá foi. A igreja escolhida deu ainda menos relevo ao ato; não era vistosa, nem buscada, mas velhota, sem galas nem gente, metida ao canto de um pequeno largo, adequada à missa recôndita e anônima.
Às oito horas parou um coupé à porta; o lacaio desceu, abriu a portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mão a uma senhora, a senhora saiu e tomou o braço ao senhor, atravessaram o pedacinho de largo e entraram na igreja. Na sacristia era tudo espanto. A alma que a tais sítios atraíra um carro de luxo, cavalos de raça, e duas pessoas tão finas não seria como as outras almas ali sufragadas. A missa foi ouvida sem pêsames nem lágrimas. Quando acabou, o senhor foi à sacristia dar as espórtulas. O sacristão, agasalhando na algibeira a nota de dez mil-réis que recebeu, achou que ela provava a sublimidade do defunto; mas que defunto era esse? O mesmo pensaria a caixa das almas, se pensasse, quando a luva da senhora deixou cair dentro uma pratinha de cinco tostões. Já então havia na igreja meia dúzia de crianças maltrapilhas, e, fora, alguma gente às portas e no largo, esperando. O senhor, chegando à porta, relanceou os olhos, ainda que vagamente, e viu que era objeto de curiosidade. A senhora trazia os seus no chão. E os dois entraram no carro, com o mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram.
A gente local não falou de outra coisa naquele e nos dias seguintes. Sacristão e vizinhos relembravam o coupé, com orgulho. Era a missa do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de sapato roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas de chita, ao domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a missa do coupé viveu na memória por muitos meses. Afinal não se falou mais nela; esqueceu como um baile.
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Editora Globo,1997, p.10.
Glossário:
Coupé (ou cupê) – Carruagem ou carro de duas portas.
Desbarretar – Retirar o barrete ou o chapéu.
Espórtula – Esmola.
Em “E os dois entraram no carro, com o mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram.” (linhas 28-29), “o mesmo gesto” se refere a: