O texto adiante servirá de base para as próxima questão.
“Contrariamente ao teatro e à poesia, a crônica inscrevia-se no cosmos machadiano como expressão legítima do seu temperamento literário. Mais próxima da tendência para a narrativa, a crônica tornar-se-ia atividade relevante na trajetória do escritor, não só pelo aspecto quantitativo como pelo qualitativo. Se a imagem de Machado de Assis não ficaria prejudicada caso excluíssemos o teatro e a poesia, acabaria deformada se deixássemos de considerar-lhe a produção no território da crônica. Enquanto o teatro e a poesia constituíram “pecados” da juventude, a crônica se alinhará entre os frutos permanentes de sua atividade; já em 1859 começam a aparecer crônicas suas em O Espelho, e até fins de 1900 as redigirá. O fato é tanto mais digno de nota quanto mais sabemos que a partir dessa data pouco publicará em revista. Quando se afastar da crônica, deixará praticamente o mais, como se, fazendo o balanço da vida, apenas tivesse forças para recolher os dispersos e completar as obras em andamento. Talvez mais do que as outras expressões estéticas, a crônica manteve-se constante e relevante na carreira de Machado, a ponto de sugerir um cronista que produziu, ao mesmo tempo, romances, contos, peças de teatro, poemas e textos críticos.
Quantitativamente, a crônica predomina na obra de Machado, haja vista o que publicou em vida, na forma de livro, e o que foi reunido postumamente em volume. No tocante à sua importância, basta sublinhar que, sem a crônica, o mais da obra machadiana conserva fechados alguns segredos: Machado era tão medularmente cronista que seus contos e romances são narrativas de cronista, que extrai do dia a dia a matéria da ficção. O tipo do parasita, por exemplo, presente já em Ressurreição, brota-lhe numa crônica de 18 de setembro de 1859. A crônica servia-lhe de posto de observação ao que ia dentro e fora do País; e de exercício permanente da escrita, permitindo-lhe apurar o estilo, atingir a decantada limpidez, que não vinha apenas do compulsar com “mão diuturna” os clássicos da Língua. Por outro lado, crônicas há tão bem armadas, ricas de fantasia e senso crítico, que pensamos estar perante verdadeiros contos; logravam a definição e a maturidade que depois se tornariam modelares: mestre da crônica, Machado soprou-lhe grandeza, tornando-a prática relevante, literariamente válida, graças a ter-lhe emprestado a gravidade que punha nos contos e romances. De onde a permanência de algumas crônicas, resistindo ao desgaste natural nesse gênero de atividade entre jornalística e literária. É que não raro Machado toma os acontecimentos como pretexto para erigir uma história ou tecer considerações que, mercê do filosofismo, tendem ao universal subjacente no efêmero cotidiano. Ao mesmo tempo, fixa o momento que passa, transformando cada crônica num testemunho interessado do tempo. Crônicas dum ficcionista de lei, poderíamos dizer, e nisso se resumiriam a força que ainda guardam.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Cultrix, São Paulo: 2001. (p.84-85)