Atenção: As questões de números 9 e 10 referem-se à crônica que segue.
Céu da Boca
Uma das sedes da nostalgia da infância, e das mais profundas, é o céu da boca.
A memória do paladar recompõe com precisão instantânea, através daquilo que comemos quando meninos, o menino que fomos. O cronista, se fosse escrever um livro de memórias, daria nele a maior importância à mesa de família, na cidade de interior onde nasceu e passou a meninice. A mesa funcionaria como personagem ativa, pessoa da casa, dotada do poder de reunir todas as outras, e também de separá-las, pelo jogo de preferências e idiossincrasias do paladar − que digo? da alma, pois é no fundo da alma que devemos pesquisar o
mistério de nossas inclinações culinárias.
A mesa mineira era grande, inteiriça e de madeira clara. À esquerda e à direita, estiravam-se dois bancos compridos, em que irmãos e parentes em visita se sentavam por critério hierárquico. À cabeceira, na cadeira de jacarandá e palhinha, o pai presidia.
A comida, imune a influências no meio ilhado entre montanhas, era simples, simples a lembrança que deixou; e quem dela se nutriu quase sempre torce o nariz aos requintes, excentricidades ou meras variedades culinárias de outras terras.
(Adaptado de: ANDRADE, Carlos Drummond de. A bolsa e a
vida. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 91-92.)