A voz de Caymmi
Muitas vozes poderosas já teve a Bahia: a voz entre contrita e sarcástica de Gregório de Matos, a voz indignada e libertária de Castro Alves, a voz insinuante e participativa de Jorge Amado. Todas expressaram, cada uma em sua singularidade, aspectos locais e universais. Mas é possível que a voz de Dorival Caymmi seja a que tenha chegado mais longe, na horizontalidade própria das canções efetivamente populares, que se espalham e se conservam vivas por gerações, nas almas e nos ouvidos. Que poder, afinal, está nos versos e nas melodias de Caymmi?
A primeira palavra que ocorre é simplicidade. Mas atenção: trata-se da simplicidade mais difícil, daquela que resulta de um processo rigoroso de depuração, da exclusão radical de toda palavra supérflua, de toda filigrana musical mais pretensiosa. As canções de Caymmi são falas limpas, em que nada atrapalha a poesia da música e do verso: ambos nascem já casados e perfeitamente harmonizados. Assemelham-se aos bem-sucedidos desenhos a bico de pena, em que todo traço é nítido, perfeitamente definido e carregado de significação.
Munido dessa arte e desse talento para a beleza essencial de tudo, Caymmi povoa suas canções com personagens de seu mundo: os pescadores, suas mulheres, seus filhos, suas jangadas − e seu amor pelo mar e pela praia, pelas ondas e pelos coqueiros, pelos ventos e pela areia. Não bastasse a arte do compositor, há ainda a arte do intérprete: sua voz poderosa, grave e inconfundível, parece ser já uma síntese do que há de profundo no mar e de leve na brisa que agita as folhas dos coqueiros. Suas canções praieiras encontram nele não apenas um cantor, mas a fonte viva de onde brotaram e saíram para ganhar o mundo. O violão, pautado pela mesma simplicidade essencial de tudo, sublinha e potencia a voz de Caymmi. O efeito final todos sabemos qual é: tudo se apresenta com a limpidez de uma
manhã de sol em Itapuã ou com o mistério enluarado da lagoa do Abaeté. Nada falta, nada sobra nessas canções. Uma vez de posse da simplicidade, tendo-a como ideal da vida e da arte, Caymmi jamais a dispensou; em retribuição, a beleza mais profunda das coisas naturais nunca o abandonou.
(Hermenegildo Soares, inédito)
Quanto ao sentido, os elementos sublinhados mantêm-se entre si uma relação de forte contraste em: