TEXTO III
Eu sou um imbecil, por José Hildebrand Dacanal
Meu genro era um pobre coitado. Como eu, nascido na roça e sem perspectivas de futuro. Mas eu tivera a sorte de estudar nos antigos seminários da antiga Igreja Católica, e de lá saíra conhecendo oito línguas. Ele não, mesmo porque os seminários e a Igreja daquela época já tinham acabado duas ou três décadas antes dele nascer. Uma coisa, porém, nos unia: a curiosidade intelectual e a ambição de subir na vida. É o suficiente, desde que trilhando o reto caminho, como diria São Paulo.
Quando ele apareceu, trazendo consigo não muito mais que seu bom caráter e a pouca idade, percebi imediatamente que ele era mais uma das incontáveis vítimas que, independentemente do nível econômico e da classe social, formam o desastre civilizatório brasileiro das últimas quatro décadas: 100 milhões de bárbaros, desagregação moral e caos pedagógico. E 60 mil mortos a bala por ano!
Seguindo o velho viés de ordenar o mundo à minha volta e disto tirar as vantagens possíveis para uma vita grata como diziam os romanos , ainda que modesta, comecei a pensar no que fazer. Cheguei à conclusão de que, se eu lhe desse alguma qualificação e o treinasse, talvez ele pudesse me ajudar em algumas tarefas braçais básicas, como digitação de textos, editoração etc. Em resumo e na terminologia dos economistas: ele obteria algumas vantagens na relação custo/benefício e eu teria mão de obra barata e confiável.
Foi aí que eu cometi um erro fatal. E um crime pedagógico. Emvez de dizer a ele que "estudar é prazer", que "cada um deve falar e escrever como quiser", que "análise sintática é uma velharia inútil", que gramática é um instrumento utilizado pela burguesia para dominar os pobres , que "corrigir redações com caneta vermelha é violentar o aluno", em vez de proferir tantas e tão brilhantes asnices (que os asnos reais me desculpem!), o que é que eu fiz? Peguei uma vara de ipê de um metro, bati na mesa e disse:
Meu filho, estudar é sofrimento. Civilização é repressão. Você tem que falar e escrever segundo as regras gramaticais, do contrário você não tem futuro. Vamos começar pela análise morfológica e sintática e pelo latim, para conhecer a lógica das línguas indoeuropeias.
Pior do que isto: mandei-o ler livros "velhos", a ter seus cadernos de vocábulos, a decorar as cinco declinações latinas. E ensinei-o a dissecar sintaticamente orações e períodos. Enfim, utilizei todos os métodos antiquados, renegados e odiados pelos quadrúpedes da pedagogia dita moderna. E então o que aconteceu?
Aconteceu incrível! que estes métodos utilizados há 3 mil anos no Ocidente funcionaram. E produziram um milagre. E um desastre.
Um milagre porque em cerca de um ano ele dominou os conteúdos básicos da sintaxe, compreendeu o sentido das declinações e traduzia breves textos latinos. Um desastre porque logo depois ele começou a dar aulas em conhecida instituição, se prepara para o vestibular e certamente cursará Letras. E eu perdi meu auxiliar de confiança e fiquei sem a mão de obra barata que eu treinara!
Veja, surpreso leitor, como eu sou um imbecil! Se eu tivesse aplicado os brilhantes métodos desta récua de asnos defensores e promotores da pedagogia dita moderna, nada disto teria acontecido. Sim, sádico leitor, eis aí a prova irretorquível da verdade: o quadrúpede sou eu. Não eles!
Disponível em: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2504504.xml&template=3898.dwt&edition=12271§ion=1012. Acesso em: 10 mai. 2009.
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I. Poderia ser suprimido nos dois casos, sem que isso causasse qualquer prejuízo para a estrutura sintática ou para a estrutura do período.
II. No primeiro caso, significa
.
III. No segundo caso, poderia ser substituído por
, o que manteria o significado do período e não exigiria qualquer outra modificação sintática.