Tratamos de Obama a Osama nos hospitais e postos de saúde da organização não governamental Emergency. Não sou terrorista.” O desabafo acaba de ser pronunciado por um médico especializado em cirurgias traumáticas emergenciais. Gino Stada trabalha nos cenários de guerra e de insurgências em nome da Emergency, que fundou com a esposa, Teresa Sarti, em 1994. Nas zonas de conflito, Stada e sua organização declaram-se neutros. A preocupação centra-se nas vítimas das violências bélicas. Em outras palavras, a Emergency, com um corpo composto de mais de mil profissionais, faz, sem indagar sobre ideologias e partidarismos, cirurgias de urgência e reabilita lesionados com próteses e terapias.
Humanista de 61 anos nascido em Milão, Stada instalou e administra postos de saúde e hospitais no Afeganistão, Serra Leoa, Camboja, Sri Lanka, República Centro-Africana e Iraque. No mês de abril, uma “arapuca”, a caracterizar terrorismo de Estado, foi montada a fim de desmoralizar o médico, que estava em Veneza. A meta era provocar um escândalo internacional, de modo a levar o governo afegão a cassar as licenças para funcionamento da Emergency. Com efeito, agentes do serviço de inteligência do Afeganistão prepararam uma falsa situação de flagrante e prenderam nove funcionários da Emergency. Dentre eles, o cirurgião Marco Garatti e os paramédicos Matteo Pagani e Matteo Dell’Aira.
O flagrante preparado consistiu numa blitz em sala da administração do hospital de Lashkar Gah. Os 007 de Karzai fingiram-se surpresos com o encontro de duas pistolas, nove granadas e dois cinturões costurados com explosivos. Durante oito dias, os funcionários da Emergency ficaram incomunicáveis. Enquanto isso, Karzai falava que os serviços de inteligência tinham abortado um plano dos terroristas talebans para matar o governador da província de Helmand. Nesse plano figuravam como suspeitos o cirurgião Marco Garatti e os demais presos.
Após as prisões, o coronel Tood Vician, porta-voz da Otan, informou que soldados da força internacional não tinham participado das prisões. Não sabia o coronel Vician que, imediatamente, Stada, ladeado de jornalistas, acionou o celular do cirurgião Marco Garatti. A ligação completou-se com um soldado britânico a responder que não podia informar nada sem autorização dos seus superiores hierárquicos. Numa segunda chamada, limitou-se a dizer que todos os nove presos estavam bem. Sequestrados em 10 de abril, os integrantes da Emergency foram colocados em liberdade às 18 horas do domingo, dia 18, depois de forte mobilização de organizações humanitárias internacionais e do Estado italiano. Para Karzai, ficou provada a inocência deles.
O móvel dessa urdidura remonta a março de 2007, quando da libertação do correspondente de guerra do jornal italiano La Repubblica, Daniele Mastrogiacomo, sequestrado pelos talebans. Stada aceitou procurar os talebans com a condição de o governo afegão e as forças de ocupação se afastarem das tratativas. Teve sucesso pela sua força moral e isso ainda não foi digerido por Karzai, pela Otan, pela CIA ou pelos 007 da rainha da Inglaterra.
(Adaptado de Wálter Maierovitch. “Um humanista e o terror de Estado”, CartaCapital, 30/04/2010.
http://www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=6585)