Esquerda e direita
O DNA é de esquerda ou de direita? Ele fornece argumentos para todos. Prova que todos nascem com o mesmo sistema de códigos genéticos, e portanto são iguais – ponto para a esquerda –, mas que cada indivíduo tem uma senha diferente, ponto para a direita. Na velha questão biologia × cultura, o DNA dá razão a quem diz que características adquiridas não são hereditárias, nenhuma experiência cultural afeta os genes transmitidos e a humanidade não ficará mais virtuosa – muito menos socialista – com o tempo. Mas a própria descoberta do DNA e todas as projeções do que se tornou possível com a manipulação do material genético mostram como o ser humano pode, sim, interferir na sua própria evolução, e como existe nele uma determinação inata para o autoaperfeiçoamento. Parafraseando Marx: os cientistas sempre se preocuparam em compreender o ser humano, agora devem tratar de mudá- lo.
A indefinição dos nossos genes é apenas mais um numa longa lista de paradoxos que nos dividem. É “de esquerda” ser a favor do aborto e contra a pena de morte, enquanto direitistas defendem o direito do feto à vida, porque é sagrada, e ao mesmo tempo o direito do Estado de tirá-la, embora não gostem que o Estado interfira em outras áreas. A direita valoriza o indivíduo acima da sociedade, que seria uma abstração, mas aceita a desigualdade social, ou o sacrifício de muitos indivíduos pelo sucesso de poucos, como natural. A esquerda muitas vezes atribui a um líder superpersonalizado a incongruente realização de um humanismo igualitário. Feliz é a mosca, que tem mais ou menos a nossa estrutura genética, mas absolutamente nenhum interesse nas suas implicações.
(Adaptado de Luís Fernando Veríssimo. O mundo é bárbaro)