Minha última consideração é sobre o negro no samba. E uma vez mais, há que bendizer os poetas. Cartola diz: "Habitada
por gente simples e tão pobre, que só tem o sol que a todos cobre, como podes Mangueira cantar?"
A indagação vai além da Mangueira. Como podem os do morro fazer com que cantem os do asfalto? Amplie-se a indagação.
Como puderam os negros, ao longo de séculos de tanto sofrimento, construir uma cultura poderosa, da qual somos todos herdeiros? Amplie-se a indagação para o país. Como uma história como a nossa – tão dura e, por tanto tempo, tão brutal –
pôde construir uma cultura tão rica?
É nisso que temos muito a aprender com as Escolas. A começar pelo senso de disciplina e de organização que as leva a realizar, no Rio de Janeiro, o maior espetáculo de arte popular do mundo. Além da disciplina e da organização, a maior beleza das Escolas, creio, é a alegria e o orgulho de serem o que são. Alegria e orgulho que expressam nas cores que adotam e no toque das baterias que elevam o tambor ancestral a extrema sofisticação. Pelo rufar dos tambores e o som dos tamborins, o povo identifica a Escola, antes mesmo que possa vê-la.
Ninguém se surpreenda, portanto, se, ao cantar sua Escola, o poeta invocar os céus, os santos e os orixás. Se invocar a "graça divina". Se disser de sua Escola que "vista assim do alto mais parece um céu no chão". Se discorrer sobre os grandes temas da história, se cantar o nome de Joaquim José da Silva Xavier e os grandes heróis da pátria. Ninguém se surpreenda
se o poeta disser que as cores da sua Escola são como o manto azul de Nossa Senhora Aparecida, abrindo a "procissão do samba".
As Escolas afirmam suas raízes e sua identidade e, ao fazê-lo, afirmam também as raízes e a identidade do Brasil. Nascidas do povo mais humilde do Brasil, as Escolas afirmam a vocação dos brasileiros, de todos os brasileiros, para a grandeza. E o fazem com a dignidade e a elegância de quem oferece ao mundo um belo exemplo de humanidade.
(Trecho do discurso de Francisco Weffort, na entrega da Ordem do Mérito Cultural, 07 de novembro de 2001. TAM. Almanaque Brasil de Cultura Popular. São Paulo: Andreato, fevereiro de 2002. p. 17)
I.
(estético): capacidade de apreciar a beleza pelo prazer que ela proporciona.
(demográfico): conjunto de dados característicos dos habitantes de uma localidade ou país.
II.
: metal usado em condutores de eletricidade.
III.
: veste feminina, larga, comprida e sem mangas, usada por cima do vestido.
por extensão, o que cobre, revestimento.