O boi vegetal
Arrebanhando as vozes que ainda continuam, o movimento para o canto do salão. Todos com os seus copos, e sorrisos fixos, essa postura flutuante de coquetel. Avulsos mas orientados, pouco a pouco se agrupam diante do homem baixo, magro, de cabelo duro e terno escuro. O governador vai falar.
O rumor cessa para o visitante que sério inclina a cabeça, agradecendo. Ele balança um instante, apoiando-se numa perna, na outra, e começa o seu discurso entre ruídos secos do microfone mal regulado. Tem um sotaque forte, que se arrasta cantante. Há o sorriso disfarçado, alguma atenção, uma porta fechada, ao fundo, sobre o pessoal da copa. [...] "Importante plano de governo é o plantio de um milhão de cajueiros, o que decerto irá contribuir para elevar o padrão de vida dos meus coestaduanos."
Um jornalista achou que a voz do governador se fazia mais forte, e no entanto mais nivelada, e embalado pensou numa grande população morando embaixo de árvores. Os ramos eram ralos, deixavam passar os raios de sol. Todo o povo estava de chapéu.
Grandes extensões verdes, riqueza, divisas. Os cajueiros voltando, insistindo. O entusiasmo, que levava a citações, "esta árvore de imenso agasalho", o tom mudado em poético, o ritmo se alargando, mais retórico. "Porque o cajueiro, senhores, é um verdadeiro boi vegetal."
Um homem de relações públicas, chegado cedo e já adiantado em bebida e cansaço, imaginou o boi fincado na paisagem, com suas patas entrando pela terra adentro, feitas raízes, nodosas, os chifres carregados de folhas e cajus.
O governador continuava, dividindo em parte e derivados a sua árvore: a madeira, a fruta, a castanha, a fibra, a sombra.
Um representante de governo, olhando o relógio e vendo já os vinte minutos de discurso, baixou a cabeça e procurou um jeito de industrializar a sombra, para concluir que seria melhor aproveitá-la sem compromissos. [...]
Os ouvintes, de copo na mão e cigarros acesos, começaram a mexer-se, educados mas inquietos, reparando que fazia calor, imaginando lá fora um trânsito pesado, lembrando ser ainda quarta-feira, a semana seus caminhos pela metade, e aquele cidadão ali se alongando em números, planos e folclore. [...]
O governador falando e observando o auditório, percebendo os seus movimentos, a hora que passara, se arrependendo de não ter feito um roteiro. Ainda muito a dizer, tanta coisa, e já precisando terminar. Um fecho, soneto. E voltou aos cajueiros, que eram símbolo. E ao boi, vegetal sim. E aos recursos humanos de sua gente. Sentindo-se muito honesto, sincero, verdadeiro, e no entanto meio confuso, atrapalhado, repetido. Com as omissões e o discursivo. O final baixo, quase de não se ouvir. E as palmas.
(Ricardo Ramos. Circuito fechado. São Paulo: Martins, 1972, p. 90-91)
O verbo flexionado nos mesmos tempo e modo que o grifado acima está na frase: